A noite
caminhou lentamente e o sono deu lugar ao caos que gritava forte aos meus
ouvidos palavras que eu não compreendia.
Passei a
noite em claro tentando não pensar em nada. A realidade já era trágica demais
para eu me preocupar com pensamentos que vinham e iam. Fui liberado após algumas
perguntas. Como não existiam provas concretas, não puderam me manter naquele
cubículo. Entretanto, percebi que este problema apenas tinha começado. Por
causa de minha memória limitada que somente conseguia avançar dois dias no
passado, eu não tinha álibi para nenhum homicídio dos vários que fui acusado.
Prometeram que iriam me vigiar dia e noite e pediram para eu não sair da
cidade. Como se eu tivesse algum lugar para ir.
Fora da
cadeia, caminhei sem saber para onde ir. Como o meu dinheiro não foi devolvido,
andei por muito tempo até chegar de volta ao centro. Sempre perguntando a
direção aos passantes e observando tudo ao meu redor. O trânsito louco da manhã
irritava os meus ouvidos. Busquei abrigo na paisagem que ainda restava no meio
de tantos prédios. Ao longe, percebi uma construção sobre uma montanha. A
curiosidade me fez perguntar o que era aquilo no final da avenida. Recebi a
resposta de uma mulher jovem com um olhar claro, roupa social e um belo
sorriso.
"É o
Convento da Penha." disse tentando ser simpática.
"Convento
da Penha, Convento da Penha... Nada ainda. Merda!" A mulher me olhou
assustada, virou as costas e me deixou com as minhas tentativas falhas de
retomar a luz da memória.
Andei por
quase uma hora até chegar novamente ao porto por onde tinha passado há dois
dias. Voltei para casa, mas, apesar do cansaço, não consegui dormir. A cabeça
rodava entre um pensamento e outro. Tentava levantar teses sobre a confusão em
que eu tinha me metido e sobre quem eu era de fato. Nada era revelado. Eu
estava escondido na escuridão de mim mesmo. Era somente uma ideia
esquecida. Incógnito. Ignoto.
Fiquei horas
deitado no sofá. Com os olhos fechados, pensando em milhares de coisas ao mesmo
tempo, tentando esquecer o barulho dos carros que passavam apressados pela rua.
Hora ou outra, abria os olhos para ver as horas no relógio de parede. O tempo
saltitava. Os ponteiros corriam adiantando o dia que partia para longe. Fugia
da noite e de sua escuridão assombrada assim como eu fugia da escuridão dos
pensamentos, assim como eu buscava a luz do conhecimento de mim mesmo.
Levantei de
sobressalto após ouvir um som familiar. Corri para a rua na tentativa de ouvir
o som mais de perto. Segui apressado para a sua fonte. Atravessei a rua Serrat
sem olhar e quase fui atropelado por um carro que descia ligeiro. Não dei
atenção ao motorista que xingava por detrás do volante. Ao chegar à Nossa
Senhora do Carmo, adentrei os seus portões. Sentei ao pé da escadaria e
apreciei o som das badaladas que anunciavam o fim do dia. Novamente, senti uma
paz reinar o meu ser, iluminando-me por dentro. Não consegui compreender porque
aquilo me fascinava tanto. Era belo demais. Eu, que não enxergava beleza em
nada que via nesse mundo desconhecido, deixava-me encantar por dezenas de segundos
ao som dos sinos.
Quando a
igreja se calou, ouvi um som seco que vinha do topo das escadas. Subi
lentamente os inúmeros degraus que a formava. No topo, senti o coração apertar
diante daquela cena. Aproximei-me do corpo caído no chão. Tinha mergulhado numa
queda sem volta em direção aos braços duros do assoalho de concreto. O sangue
saia de sua cabeça e por vários cortes espalhados pela pele. Percebi que ainda
havia vida. Ele olhava para mim com uma cara de espanto. Abaixei perto dele e
ouvi a sua voz sussurrar tremulamente.
"David...
Da-vid... me desculpe!" disse baixo quase sussurrando.
"O que?
Como sabe o meu nome? Porque está pedindo desculpas?"
"O
livro..."
"Que
livro?"
"O
livro, David. Não tem como fugir... arggg... aaarrgg..."
"Fugir
de que? Não estou entendendo!"
"Mate ou mooo...aaarrrggg" sem
terminar a última palavra, desfaleceu na minha frente deixando somente uma
nuvem de dúvidas e incertezas sobre o pouco que me restava de sanidade.
Imagem: rioblog e blogodorium
