Capítulo 7


7.
A noite caminhou lentamente e o sono deu lugar ao caos que gritava forte aos meus ouvidos palavras que eu não compreendia.
Passei a noite em claro tentando não pensar em nada. A realidade já era trágica demais para eu me preocupar com pensamentos que vinham e iam. Fui liberado após algumas perguntas. Como não existiam provas concretas, não puderam me manter naquele cubículo. Entretanto, percebi que este problema apenas tinha começado. Por causa de minha memória limitada que somente conseguia avançar dois dias no passado, eu não tinha álibi para nenhum homicídio dos vários que fui acusado. Prometeram que iriam me vigiar dia e noite e pediram para eu não sair da cidade. Como se eu tivesse algum lugar para ir. 
Fora da cadeia, caminhei sem saber para onde ir. Como o meu dinheiro não foi devolvido, andei por muito tempo até chegar de volta ao centro. Sempre perguntando a direção aos passantes e observando tudo ao meu redor. O trânsito louco da manhã irritava os meus ouvidos. Busquei abrigo na paisagem que ainda restava no meio de tantos prédios. Ao longe, percebi uma construção sobre uma montanha. A curiosidade me fez perguntar o que era aquilo no final da avenida. Recebi a resposta de uma mulher jovem com um olhar claro, roupa social e um belo sorriso. 
"É o Convento da Penha." disse tentando ser simpática. 
"Convento da Penha, Convento da Penha... Nada ainda. Merda!" A mulher me olhou assustada, virou as costas e me deixou com as minhas tentativas falhas de retomar a luz da memória. 
Andei por quase uma hora até chegar novamente ao porto por onde tinha passado há dois dias. Voltei para casa, mas, apesar do cansaço, não consegui dormir. A cabeça rodava entre um pensamento e outro. Tentava levantar teses sobre a confusão em que eu tinha me metido e sobre quem eu era de fato. Nada era revelado. Eu estava escondido na escuridão de mim mesmo. Era somente uma ideia esquecida. Incógnito. Ignoto. 
Fiquei horas deitado no sofá. Com os olhos fechados, pensando em milhares de coisas ao mesmo tempo, tentando esquecer o barulho dos carros que passavam apressados pela rua. Hora ou outra, abria os olhos para ver as horas no relógio de parede. O tempo saltitava. Os ponteiros corriam adiantando o dia que partia para longe. Fugia da noite e de sua escuridão assombrada assim como eu fugia da escuridão dos pensamentos, assim como eu buscava a luz do conhecimento de mim mesmo. 
Levantei de sobressalto após ouvir um som familiar. Corri para a rua na tentativa de ouvir o som mais de perto. Segui apressado para a sua fonte. Atravessei a rua Serrat sem olhar e quase fui atropelado por um carro que descia ligeiro. Não dei atenção ao motorista que xingava por detrás do volante. Ao chegar à Nossa Senhora do Carmo, adentrei os seus portões. Sentei ao pé da escadaria e apreciei o som das badaladas que anunciavam o fim do dia. Novamente, senti uma paz reinar o meu ser, iluminando-me por dentro. Não consegui compreender porque aquilo me fascinava tanto. Era belo demais. Eu, que não enxergava beleza em nada que via nesse mundo desconhecido, deixava-me encantar por dezenas de segundos ao som dos sinos. 
Quando a igreja se calou, ouvi um som seco que vinha do topo das escadas. Subi lentamente os inúmeros degraus que a formava. No topo, senti o coração apertar diante daquela cena. Aproximei-me do corpo caído no chão. Tinha mergulhado numa queda sem volta em direção aos braços duros do assoalho de concreto. O sangue saia de sua cabeça e por vários cortes espalhados pela pele. Percebi que ainda havia vida. Ele olhava para mim com uma cara de espanto. Abaixei perto dele e ouvi a sua voz sussurrar tremulamente. 
"David... Da-vid... me desculpe!" disse baixo quase sussurrando. 
"O que? Como sabe o meu nome? Porque está pedindo desculpas?"
"O livro..."
"Que livro?" 
"O livro, David. Não tem como fugir... arggg... aaarrgg..."
"Fugir de que? Não estou entendendo!"
"Mate ou mooo...aaarrrggg" sem terminar a última palavra, desfaleceu na minha frente deixando somente uma nuvem de dúvidas e incertezas sobre o pouco que me restava de sanidade. 


Imagem: rioblog e blogodorium