Capítulo 6


6.
O som das horas invadiu os meus ouvidos e apagou por um momento a confusão que ofuscava a minha mente.
O sino da igreja martelava suavemente penetrando pelos tímpanos e invadindo a minha alma. Apaziguou  os meus sentidos e apagou o desespero que me envolvia. O grito dos pensamentos deu lugar a uma brisa mansa que sussurrava limpidamente aos meus ouvidos. Fechei os olhos e deixei-me envolver pela batida que roubava a minha atenção e, pela primeira vez, a boca rasgou um sorriso sincero. Respirei sentindo a vida penetrar os pulmões espalhando-se por cada órgão que me formava, atingindo desde o mais profundo e escondido pensamento até as pontas dos milhares fios de cabelos que eu tinha espalhados pelo corpo. Quem eu era não importava mais.
Quando  o badalo silenciou, saí do meu estado de transe. Voltei  à realidade e percebi uma dor se iniciando no estômago. Era o físico reclamando por alimento. Levantei-me. Senti que novamente eu era eu mesmo. Um alguém sem passado, com o presente cheio de dúvidas e um futuro incerto. Cansado das minhas lamúrias e da falta de solução dos problemas complicados, decidi começar a resolver os mais simples. Ofereci a mim a energia que me faltava. Levantei daquele banco de praça após uma última olhada em direção à casa dos Mirpe. Senti um arrepio percorrendo a minha pele, porém levantei-me decidido a deixar aquelas mortes e as dúvidas sobre o caderno de lado por um momento.
Caminhei pela rua Gama Rosa e entrei no primeiro estabelecimento com cheiro de comida. Coloquei o caderno sobre a cadeira ao lado. Os nomes em vermelho eram as minhas únicas companhias naquele dia cinza sem memória. Depois de passear pela variedade de comida disposta sobre uma estufa e fazer várias escolhas sem compreender a razão delas, me alimentei com fartura. As garfadas vorazes fizeram com que as pessoas da mesa ao lado me olhassem de relance. Não liguei para o público que me observava. Apenas satisfiz sem cautela a vontade mais primitiva do ser humano: o prazer de matar a fome. Tudo gira em torno disto. Dia após dia, os prazeres são saciados e dão lugar a outros mais ou menos importantes. Nesse ambiente de volúpias, somente o gastronômico permanece indissolúvel. Comemos o que nos dá prazer e não somente para existir.
Com o corpo pesado, os pensamentos caminhavam lentamente pela calçada das ideias. Entretanto, mesmo com carne e mente pedindo pausa, continuei a jornada pelos endereços que sangravam pelos rasgos na pele do papel. Visitei todos e, em cada um deles, o que eu previa aconteceu. Sangue pelas feridas nos pescoços, corpos estirados pelo chão da sala e muita dor e sofrimento para os que ficaram. O caderno era sempre exato no endereço da tragédia e, com o passar do tempo, passei a não mais me surpreender com as más notícias. Todos os endereços eram no Centro de Vitória e não havia nenhuma ligação aparente entre as vítimas. O que começou a chamar a minha atenção foi o fato de todas morarem em casas antigas e encorpadas. Essa parecia ser a chave dos acontecimentos. Ou melhor, eu pensei que fosse. 
Já começava a anoitecer quando cheguei na Rua Graciano Neves. A iluminação pública tingia de âmbar as faixadas dos prédios. Pelas laterais da pista, vários carros estacionados esperavam os seus donos para um passeio. Com as mãos no bolso, protegia-me do vento frio que timidamente arrepiava os pelos do meu corpo. Apertei o passo até chegar ao número escrito no caderno. Assim como as outras, a casa estava fechada e não parecia ser abrigada. Era branca e tinha um quintal com algumas plantas na frente. Eu pude ver detalhes da fachada, pois o muro de tijolos era baixo com grades altas de barras de ferro pintadas na cor cinza sobre ele. A casa era de dois andares com uma varanda em cada. Do lado da varanda inferior havia uma porta grande de madeira que parecia ser uma garagem. Do portão, por ter um aviso escrito num pedaço de papel informando que a campainha não funcionava, gritei o primeiro nome da lista e, como não fui atendido, continuei chamando nome após nome. Eram quatro. Todos eram nomes masculinos. Depois que as minhas tentativas de ser atendido falharam, tentei forçar o cadeado com a mão que, para a minha surpresa, não estava trancado. 
Entrei pelo quintal e tentei abrir a porta frontal da casa, porém estava fechada. Circulei ao redor da casa e achei outra entrada pelos fundos. A porta estava aberta até o canto e pude ver que as luzes estavam  apagadas. Entrei com passos leves tentando não fazer barulho. A casa tinha teto alto e estava um pouco bagunçada. Passei pela porta da cozinha e percebi uma escada de madeira em frente a uma sala com uma mesa de bilhar. Sobre ela, as bolas estavam espalhadas esperando a próxima tacada. Tive a impressão de que esperavam por muito tempo, já que eu parecia ser o único ser vivo naquele lugar. Continuei a caminhada e cheguei à sala. Novamente, deparei-me com uma cena grotesca. Quatro corpos caídos pelo chão. O cheiro de morte invadiu as minhas narinas, mas não vomitei como da primeira vez. Somente observei atônito lutando contra a memória que fotografava aquilo tudo. Após alguns segundos, senti algo frio encostar na minha nuca. O susto fez com que os meus olhos quase saltassem de órbita. Ouvi uma voz forte que me ordenava.
"QUIETINHO! Polícia! Você está preso!" 
Ao me virar, percebi que era o mesmo oficial que estava na minha casa no dia anterior e que tinha me pedido para comparecer à delegacia para prestar depoimento. Novamente, as palavras não saíram e deixei-me levar ao lugar que eu deveria ter ido por conta própria. A noite caminhou lentamente e o sono deu lugar ao caos que gritava forte aos meus ouvidos palavras que eu não compreendia.