Capítulo 5




5.
O susto maior foi perceber que, assim como aquela folha, o fragmento, que antes era branco, estava negro como a noite das minhas memórias.
Por muito tempo, analisei o caderno e as suas folhas foscas que sangravam nomes e endereços. Convenci-me de que o pedaço de papel que guardava sempre tivera sido preto. Era somente a memória que continuava a me pregar peças. Não havia lógica alguma em um papel comum de caderno, sem nenhuma mudança nas condições ambientais ou químicas, mudar de cor de uma hora para outra. Impossível ocorrer tal mutação. A única explicação plausível foi a minha mente debilitada ter se tornado a minha pior inimiga. 
Com o pouco de razão que ainda me restava, busquei descobrir quem eu era, onde aquelas pessoas que saíram mortas daquela casa se encaixavam em minha vida e o que queria dizer aquele caderno de duas faces. Encontrei algumas respostas dentro da casa. Através dos vários álbuns de retrato, compreendi que as pessoas que encontrei no chão ao chegar eram a minha família.  Mulher linda. Duas filhas jovens. Uma aparentava ter quinze anos de idade e a outra somente dez. Apesar da tão chocante descoberta, não me senti abalado. Era como se, com as memórias, os sentimentos também tivessem sido esquecidos. Apesar das várias imagens em que eu aparentava estar feliz ao lado daquelas pessoas, me sentia apático frente ao caos da morte de entes que me eram tão próximos, mas que se tornaram distante ao ponto de não fazer brotar nenhum fragmento de memória ou um fio de pesar sequer.
Descobrindo quem eram aquelas pessoas, o mistério sobre mim se ampliou ainda mais. Senti-me o homem mais frio do mundo diante de tamanha indiferença. Era como se a pessoa do retrato não fosse a mesma pessoa que o encarava. Como se eu tivesse vivido uma vida diferente no passado ou se um ser cruel e sem vida tivesse invadido o meu corpo, tirado toda bondade que existisse e com ela as lembranças e sentimentos. Uma tristeza infinda acompanhou a introspecção que me guiava até o momento. Senti o corpo pesar. Deitei no sofá em que eu estava e dormi profundamente. Foi um sono sem descanso e sem imagens. Somente um fechar e abrir de olhos.
Quando despertei, já era dia. O céu estava claro, porém as nuvens escondiam o sol dissipando a sua luz que cobria o ambiente sem deixar sombras. Havia pouco contraste de cores fazendo um mundo quase preto e branco assim como o caderno. Sem expressão alguma no rosto, fiquei na janela tentando não pensar no que tinha vivido no dia anterior. Tentava somente observar os seres que passavam na minha frente. Atividade impossível no momento, pois tudo me fazia refletir. Tudo me levava a tentar achar as respostas para as minhas perguntas. Lembrei do policial que, na noite anterior, tinha me pedido para ir à delegacia logo cedo. Pensei por um momento e disse em voz alta. "Mas que delegacia? Nem sei se eu sou eu mesmo." 
Pela primeira vez, pude ouvir o som da minha voz. Eu tinha uma voz grave. Não me reconheci na minha própria voz. Assim como tudo era estranho para mim, a voz que saiu da minha boca pareceu ser a voz de outra pessoa. Uma dublagem barata de filme vagabundo. Pensei que ela poderia mudar no decorrer do dia. Afinal, eram sons de um vivente recém despertado. Assim como o corpo se intumesce pela manhã, também a voz se encorpa e ganha tons graves diferentes do costumeiro. Decidi não me preocupar. Era somente uma das coisas que eu não sabia. Na verdade era a menos importante de todas. 
Lavei o rosto, peguei o dinheiro que achei em um copo com tampa que estava atrás de um dos porta-retratos e fechei a porta atrás de mim, deixando a casa cada vez mais longe a cada passo dado. O caderno me acompanhou pelas ruas da Cidade Alta até uma grande e antiga construção pintada de amarelo. Era um prédio público que ficava sobre um morro frente ao porto. Um museu talvez. Abri a minha boca e, pela primeira vez, consegui conversar com um estranho. 
"Bom dia! O Senhor poderia me informar como eu chego à rua Coronel Monjardim?", Perguntei a um dos vigias que estava na porta da construção. 
Segui as orientações dadas e me deparei com uma casa antiga e imponente que contrastava com a arquitetura do grande prédio a sua frente. As suas grades deixavam revelar a escada que dava ao quintal frontal da casa e a sua fachada com muros grossos de blocos maciços. A construção tinha dois andares com uma varanda em cada um deles. As janelas, também antigas, eram reforçadas por grades com suas barras formando vários quadrados. 
No livro, pude ver o nome das pessoas que moravam naquele lugar: Caio Henrique de Almeida Mirpe, Augusto Victor de Almeida Mirpe e Júlia Maria de Almeida Mirpe. Chamei pelo primeiro nome que encontrei na página negra de linhas rubras e não obtive resposta. Chamei insistentemente com palmas e voz. Nada. A casa parecia estar vazia. De repente, ouvi um portão se abrir atrás de mim. Ao me virar, percebi que o porteiro do grande prédio vinha em minha direção. 
As suas palavras fizeram com que a minha garganta novamente secasse. As palavras não saiam. Emudeci. Outra tragédia foi anunciada e, apesar de ter acontecido há uma semana, era como se eu pudesse ver os corpos dispostos pela sala. Três pessoas caídas, banhando o assoalho com o vermelho que saltava de suas gargantas perfuradas. Caminhei para a praça que ficava há uns cem metros dali. Sentei num dos seus bancos de madeira e olhei fixamente para a igreja a minha frente. O som das horas invadiu os meus ouvidos e apagou por um momento a confusão que ofuscava a minha mente.