4.
Pela
primeira vez durante a minha jornada, arrependi-me de perseguir aquele que
ficou no passado de minhas lembranças.
Sentado no
canto da sala, coloquei a cabeça entre as pernas e observei de lá a cena
horrível a qual presenciava. Pela janela, penetrava uma luz prateada que iluminava
os móveis empoeirados dispostos pela casa. Nada era familiar, porém o aperto no
peito e o endereço em meu bolso me ligavam àquele ambiente dantesco. Não
conseguia pensar. Somente observava perplexo e atônito tentando excluir da
mente o que as minhas retinas insistiam em me apresentar. A imagem penetrou-as
com brutalidade roubando qualquer coerência dos sentidos. Esmagou o pouco de
sanidade que ainda me restava.
Levantei
correndo e antes que eu pudesse sair, percebi uma sombra bloqueando o feixe de
luz que invadia o cômodo pela porta que permaneceu aberta. Dessa vez não foi um
aperto na garganta que senti. Senti o meu corpo se imobilizar. Os músculos não
me obedeciam. Um suor frio escorreu pelo meu rosto e novamente fiquei tonto e
quase caí. Pernas bambas. Joelho ao chão. Entregaria-me aos braços duros do
piso se não fosse aqueles outros que me seguraram. Olhei para trás e percebi
que aquela pessoa falava comigo, mas eu não conseguia ouvir o que era
pronunciado. Os meus olhos turvos pela escuridão do ambiente não revelaram a
face que me ajudava naquela hora de terror. Pela primeira vez, pus-me a chorar.
Lágrimas saltaram dos olhos e, mesmo não entendendo o porquê delas, eu sabia
que eram necessárias. Rolavam molhando a minha roupa e eu deixei que rolassem.
Deixei que aquilo tudo que eu não compreendia viesse a tona. Dividi com o
desconhecido que me abraçava o sentimento que brotou inesperadamente.
Demorei
alguns minutos daquele jeito e, quando as lágrimas secaram, me levantei e parei
de frente ao porta-retratos que me atordoou daquela maneira cegando os meus
sentidos. Segurei a fotografia e encarei clinicamente as pessoas que estavam
nela. Eram quatro: duas meninas, uma mulher e um homem bem afeiçoado.
Carreguei-a para o banheiro. Senti as pernas bambearem novamente com a
confirmação visual no espelho. A pessoa que sorria no retrato era a mesma que o
segurava. As mulheres que o acompanhavam na imagem eram as mesmas que estavam
caídas pelo chão da sala pintando-a de vermelho com o líquido que saltava por feridas
abertas no pescoço.
Ao voltar à
sala, a pessoa me esperava com um olhar triste. Pude perceber que fora este o
olhar dirigido a mim, pois as luzes estavam ligadas. Elas revelavam todos os
detalhes daquele desastre que era bem pior do que pude ver no escuro. Sem dizer
palavra alguma, saí pela porta e coloquei para fora o que tinha no estômago.
Como eu não tinha comido nada o dia inteiro, senti o ácido gástrico queimar a
garganta. Novamente um toque. Dessa vez era outra pessoa que me tocava. Quando
olhei para trás, vi arma, bigode e um rosto frio me olhando.
"Tudo
bem com o Senhor? Quer que eu chame um médico?" Disse o policial.
Ainda com as
palavras entaladas, neguei com a cabeça oferecendo o silêncio ao oficial que me
observava desconfiado. Eram três. Enquanto aquele continuou na porta me
olhando, os outros dois investigavam a casa. Queriam saber se éramos os únicos
ali dentro ou se os meliantes ainda estariam escondidos. Arma em punho.
Palavras de advertência.
"Polícia!
Se tiver mais alguém aí, saia com as mãos para cima!"
Uma hora
mais tarde, outros policiais vieram ao local. Investigaram incansavelmente a
casa. Removeram os corpos com um caminhão preto com as seguintes palavras nas
laterais:
"DISQUE
DENÚNCIA
181
SIGILO
ABSOLUTO"
Antes de
sair, um deles parou na minha frente e fez várias perguntas sobre o ocorrido.
Como não obteve respostas, saiu pedindo-me para comparecer ao distrito policial
pela manhã. Entrei e tranquei a porta.
Não sabendo
o que fazer naquele lugar desconhecido que, o que tudo indicava, era a minha
casa, comecei a limpar todo o sangue que cobria os móveis. Foi assim que
achei aquilo que trouxe o caos em que me encontro agora. Foi assim que eu
esbarrei com o início do fim da minha vida. Tomei em minhas mãos o caderno negro
que estava embaixo da luminária ao lado do sofá. Estava à vista de todos, porém
só chamou a minha atenção naquela hora em que estava sozinho. Era um caderno de
capa dura de couro preto e sem marcas. Sentei no sofá com ele nas mãos.
Estranhei o seu conteúdo. Era formado por trinta folhas negras assim como a
capa e as outras eram brancas. Todas as folhas negras estavam escritas com
caneta vermelha. Eram nomes e endereços de várias pessoas. Passei página por
página. Ao chegar na última página preta do caderno, percebi que faltava um
pedaço. Estavam grafados quatro nomes nela, porém o último estava rasurado e
não era possível lê-lo. Os outros eram todos nomes femininos. O pedaço que
faltava era exatamente o endereço que sempre vinha escrito no fim das folhas.
Parei nessa página por alguns segundos. Ainda
não conseguia me lembrar de nada antes da ponte. As três mulheres mortas que
foram levadas pela polícia não trouxeram nenhuma memória sobre o meu passado.
Ele estava tão obscuro quanto na hora em que acordei, porém tudo o que
aconteceu até ali estava fresco em minha mente. Lembrei do endereço que
encontrei. Ao tirar o pedaço de papel do bolso, fui tomado novamente por um
sentimento violento que me fez soltá-lo. Caiu próximo ao meu pé. O coração
apertou. Batia enlouquecido. Tomei novamente o papel em minhas mãos e percebi
que nele estava a mesma letra que preenchia todas aquelas folhas do caderno.
Aquele era o pedaço que faltava. Aquela folha negra coberta com palavras de
sangue somente era completa com o pedaço de papel que me acompanhou o dia
inteiro. O susto maior não foi perceber que o fragmento encaixava. O susto
maior foi perceber que, assim como aquela folha, o fragmento, que antes era
branco, estava negro como a noite das minhas memórias.
Nota do autor: De novo sem caneta vermelha. Ando um pouco desmemoriado ultimamente. (não como o personagem, tá!? rs)
Imagem: katiagbueno

