Capítulo 3




3.
Rua Sete de setembro, 393,
Vitória-ES
Cep: 29015-000
Este era o endereço que carreguei comigo todo aquele tempo sem perceber. Não sabia o que encontraria no destino ali descrito. Eu sabia que precisava procurar por respostas. Precisava preencher as lacunas. Esperava terminar com aquela angústia tatuada em meu peito, levantar do túmulo do esquecimento e encarar o meu passado com um sorriso no rosto. 
Olhando para a alva lauda fria em minhas mãos, permaneci por alguns minutos. Olhei para os lados procurando qual direção seguir. As lojas ao redor estavam quase todas fechadas. Um aglomerado de pessoas se formava em frente a uma grande construção de dois andares iluminada em cor âmbar com cartazes emoldurados que pendiam ao lado das portas antigas de metal. O seu nome estava grafado no concreto superior da fachada. A decoração e as várias estátuas em seu cume indicavam a idade avançada do edifício. A imponência daquele lugar chamava a atenção dos passantes. Eram sete estátuas no topo e cinco logo abaixo das três estátuas centrais. Seis delas saldavam o busto do ilustre personagem homenageado com seu nome dado àquele lugar bem no centro da cidade. "CARLOS GOMES", "THEATRO CARLOS GOMES"... repeti tentando me lembrar de algo, tentando achar familiaridade no som da minha voz. Novamente, recebi o silêncio dos pensamentos em resposta ao meu apelo. 
Caminhei em direção a um policial que fazia guarda na calçada do lado esquerdo do teatro. Um calafrio percorreu a minha pele. Ao me aproximar, senti o estômago revirar. Sentia uma ânsia que amargou ainda mais a garganta sedenta, queimava o esôfago matando o frescor que o vento frio noturno fornecia à pele. Não entendi o porquê  daquela reação fisiológica. Dores psicossomáticas afligiam a minha carne me incendiando por dentro, rasgando os meus órgãos. Passei pelo oficial e continuei a minha jornada para longe dele. Senti que os músculos relaxavam e o coração desacelerava a cada passo dado. 
Após esse episódio, comecei a questionar o motivo daquilo. "Será que eu sou um foragido da justiça?", "Mas as minhas roupas me colocam em outro patamar. Posso ser um criminoso de colarinho branco.", "Será que o meu medo foi engolir as palavras e oferecer somente o silêncio ao ouvinte?", "Eu falo a mesma língua que essas pessoas que passam?", "Eu consigo entender as placas de trânsito. Com certeza consigo falar essa língua que me envolve." Um medo repentino percorreu o meu corpo, subindo pelas costas. Este eu sabia a causa. Tinha medo de ser um alguém desprezível. Alguém que vivesse à espreita de oportunidades no meio do fracasso alheio. Ou pior... tinha medo de ser alguém cruel e de que, assim que relembrasse a minha vida passada, uma figura fria e furiosa tomasse o meu lugar oferecendo terror e medo ao mundo. 
Parei diante de um dos poucos estabelecimentos que ainda estava aberto naquela hora. Olhei para aquela porta de vidro que fechada e vi o meu reflexo estampado nela. Passei a mão no rosto e senti a pele que me abrigava. Eu tinha traços joviais. Traços que não reconhecia. Era como se tivesse invadido o corpo de um desconhecido qualquer. Alguém com uma história interrompida pela minha inescrupulosa violação corpórea. Percebi que o segurança me olhava de relance tentando entender as minhas atitudes. Era um ambiente cheio de caixas de medicamentos que também ficava ao redor da praça dos salgueiros chorosos. Por uma última vez, olhei para o meu reflexo no espelho e a minha atenção se fixou em uma placa atrás de mim. Eu estava na rua indicada na nota do meu bolso. 
Não era de fato uma rua. Era uma calçada ampla que ora acabava dando lugar a asfalto e carros ora continuava oferecendo-se aos pés dos pedestres. Caminhava pelos blocos portugueses irregulares que cobriam o chão de terra batida daquele lugar. Vários prédios se erguiam pelo caminho deixando somente uma faixa de céu à vista. Passei por algumas pessoas que tocavam um som dançante e se divertiam com goladas de cerveja. Reconheci o ritmo que saltava daqueles instrumentos. Eram batuques acompanhados pelo som de pequenos pedaços de madeira acordoados. Continuei a jornada. Percebi que, em meio a tanta euforia, eles não tinham me notado. Não notariam nada que passasse. Também cruzei por um garçom que arrumava algumas mesas pelo caminho. O estabelecimento em que ele trabalhava ficava de frente para uma praça também coberta pelos mesmos tipos de blocos e enfeitada pelo mesmo tipo de vegetação. Continuei a minha caminhada. Tentava não pensar nas dúvidas que carregava. Não me importava com qualquer tipo de risco que eu pudesse sofrer. O maior risco que eu corria era esbarrar com um "EU" baixo e sem escrúpulos.
A calçada deu lugar ao asfalto e acompanhei a progressão numérica dos prédios até o 393. O meu destino era uma casa com um portão de ferro enferrujado. Havia um pedaço de pano listrado amarrado em uma de suas barras. Por detrás, os dois lances curtos de escada davam acesso a uma porta gradeada. No fim do primeiro lance, uma janela fechada também gradeada não revelou sinais de civilização nos interiores daquela residência. Senti um frio gélido percorrer a minha pele. Os meus olhos escureceram e, por mais uma vez, quase fui ao chão. O torpor dos meus sentidos me levou a adentrar sem permissão. Subi apressado e bati forte naquela porta. Como não fui respondido, forcei o portão de ferro, porém não precisei fazer muita força. Senti a garganta secar ao ranger daquelas dobradiças. Assim como o portão, a porta também estava aberta. Empurrei-a lentamente. Silêncio. Nada foi revelado a princípio, mas, depois que os olhos se acostumaram com a penumbra, uma tragédia penetrou a minha retina. Pela primeira vez durante a minha jornada, arrependi-me de perseguir aquele que ficou no passado de minhas lembranças.