Capítulo 2




2. 
"QUEM SOU EU?"
Continuei repetindo a frase execrável por horas a fio. Sei que foram horas, pois o sol se deitava no horizonte anunciando a proximidade do crepúsculo e a sua dama de olhos brilhantes. Durante aquele tempo, busquei respostas dentro da minha cabeça. "QUEM EU SOU?", "QUEM EU SOU?", "QUEM EU SOU?". Eu repetia infatigavelmente. Era o meu hino, o meu clamor. Sem ter para onde ir ou saber o que fazer, permaneci daquele jeito sentado sob a ponte e o trânsito louco de uma cidade que eu não sabia o nome gritava aos meus ouvidos. Não me sentia parte integrante daquela metrópole que se estendia para lugares que eu não conhecia... ou conhecia. O fato era que eu não conseguia me lembrar nem do meu nome. Diante desse agravante, saber o nome da cidade em que eu estava me pareceu efêmero demais para o meu intelecto.
Com o sol quase abraçando a terra, levantei a cabeça e olhei para o teto da construção sem face. Os seus braços de metal pareciam frágeis demais para suportar o peso das placas de concreto que a cobria. Senti-me desprotegido. Um inseto prestes a ser esmagado. O calor deu lugar à uma brisa mansa e agradável. Então, aproveitei que a minha atenção tinha sido roubada e me levantei daquele lugar. Saí em busca de novos ares. Talvez a mudança de ambiente pudesse clarear a parte obscura da minha mente, fornecendo a luz do autoconhecimento. 
Caminhei durante horas pela cidade desconhecida. Examinava cada detalhe tentando achar algo que fosse familiar. Algo que me fornecesse uma lembrança qualquer. Nada! Tudo era desconhecido. Eu era como um estrangeiro em terras nunca visitadas, porém antes de ser um estrangeiro naquela cidade, era um estrangeiro de mim mesmo. Caminhava pelas terras incógnitas de minha alma, tentando desenterrar pistas de quem eu era. "Nada!" Nem um fragmento de memória para revelar algo sobre as minhas raízes. Lacrado a sete chaves. Escondido nas entranhas da minha essência obscura, da minha existência desconhecida por mim mesmo. O não saber a própria identidade é como morrer. É como ser um cadáver em movimento. A falta de conteúdo é pior do que qualquer dor física, pois quando sentimos na carne o animal em nós toma a frente cegando os sentidos, obstruindo a produção de pensamento, nos fazendo agir. Sendo assim, agimos por extinto. Entretanto, a dor interna nos coloca frente à vários paradigmas não respondidos por séculos de humanidade. Eles gritam por atenção. Gritam desesperados pedindo respostas. Somos devorados pelas dúvidas, pelo medo, por nós mesmos. Morremos. Padecemos diante do fracasso da falta de identidade. Somos, mas já não há. Somente um frasco vazio. 
Já era noite. As várias lojas daquela longa e estranha avenida cerravam as suas portas. Atravessei a rua e caminhei em direção ao Grande porto comercial que separava mar e terra e continuei a caminhada. Várias pessoas pelas calçadas. Algumas passavam por mim apressadas, outras esperavam calmamente nos pontos de ônibus. Voltavam para as suas casas. Eu admirava todas elas. Não perdiam tempo com esses tipos de questões. Pareciam saber para onde ir, enquanto os meus pés caminhavam vacilantes sem ter aonde chegar. 
Eu já tinha caminhado por quase uma hora, o frio noturno se intensificou por causa da proximidade do mar. Um vento salubre fez os pelos se arrepiarem, fazendo-me contrair os músculos na ânsia de calor. Saí daquela rua que beirava o mar e rumei em direção a uma placa que dizia Praça Costa Pereira. Percebi que alguns moradores de rua ocupavam o lugar matando o tempo que tinham de sobra. Eram homens e mulheres sentados pelos vários bancos daquele lugar. Alguns provavam uma espécie de solvente. Embebiam um pequeno pedaço de pano e inalavam perdendo a noção da realidade. Outros bebiam e mexiam com os passantes. Ignoravam o status de desabrigado que carregavam. Não demonstravam tristeza diante das intempéries da vida. Apenas sorriam e aproveitavam o próximo trago. 
Sentado, olhando para um salgueiro que derramava as suas tranças, o vento litorâneo se intensificou. Esfreguei as mãos pondo-as no bolso da calça. Senti que, além delas, algo ocupava aquele espaço. Retirei o conteúdo e percebi que se tratava de um endereço grafado com caneta de tinta vermelha. O escarlate daquele fragmento de papel encheu-me de esperança. Eu tinha encontrado a primeira pista de um passado obscuro. Era o alento que me faltava. Se eu soubesse o que viria, permaneceria na praça com os ignorados. O que pareceu ser a luz no fim do túnel era somente o prenúncio da maldição que me acompanha. 



Nota do autor: Não sou daltônico (risos). Eu esqueci as minhas canetas na escola, por isso a caneta preta. 
Imagem: Felipe Guasti