11.
Mantive um sorriso no rosto e a serenidade tomou o meu ser e me levou para casa.
Sim, perceba
que o contraditório andava de mãos dadas com o acaso dos meus dias. Passei a
noite inteira lutando contra o travesseiro, tentando não pensar nas intempéries
da vida que afligiam a alma e afogavam o sono. Depois de algumas horas
revirando sobre os lençóis, levantei e fui à cozinha. Enchi um copo com água e
sentei no sofá da sala. Decidi enfrentar a madrugada de frente e observar a
noite fugir do contra-ataque da luz. Foi nessa tentativa de me manter desperto
que o caminhar das horas, me tomando no colo, trouxe a escuridão dos sentidos.
Adormeci profundamente. O dia foi invadido e permaneci inconsciente até o véu
da lua tocar o céu sombrio novamente.
Quando
acordei, uma camada espessa de nuvens cobria a cidade. A lua aparecia entre
elas às vezes para iludir os viventes com o seu brilho encantador que não era
nada mais do que um furto da luz solar. Era fim de semana. As ruas aos poucos
se encheram de gente que iam em direção aos sons que se desprendiam dos
instrumentos atraindo o olhar dos passantes. Lembro-me bem desse dia. Lembro
dos carros passando apressados, das casas iluminadas, do sorriso das crianças
que corriam dispersas pelas calçadas. Lembro, pois além de ser um dia que
começou diferente dos demais, este foi o dia em que eu morri. Não digo isso
como um defunto sem vida e em decomposição, nem reflito aqui a mística
religiosa que há por detrás dos tecidos finos que separa vida e morte. Digo
alegre e com um sorriso rasgado na face. Digo com o coração extasiado de
emoção, pois foi nesse dia em que eu morri que a minha vida começou. Foi no
extinguir da minha existência que aprendi a viver. Não, leitor. Não fique
triste. Não lamente a minha morte. Espere. Sim... espere, pois o tempo irá
enxugar as lágrimas que lhe escapam. Deixe-me sem mais delongas fazer-lhe
entender o motivo e os poréns do que sinto.
Como já foi
dito, era noite quando acordei. Digo erroneamente que acordei, pois fui
acordado pelos carros que buzinavam enlouquecidos. As múltiplas vozes das
pessoas que passavam também colaboraram para o meu despertar tardio. Eram
jovens. Todos em busca de uma boa aventura. Entregavam-se aos prazeres noturnos
que o álcool e uma roda de amigos podem proporcionar. Enquanto tudo isso
acontecia, eu observava pela janela. Pela primeira vez, ela se encontrava
aberta. Casa iluminada. Os olhos por trás delas atentos aos mínimos movimentos
alheios pela rua. Ignoravam o céu turvo, prenúncio de tempestade. Entretanto,
aquele olhar captava tudo. Nada escapava. Eles perceberam a figura feminina que
subia a rua com seu caminhar singelo e com os lábios desenhando um belo
sorriso. Stela caminhava contente em direção aos festejos que aconteciam na
rua. Uma euforia inexplicável explodiu no peito do observador.
Sem
compreender ao certo o motivo, coloquei o livro e o punhal em uma bolsa a
tiracolo e saí de casa. Percebi que as pessoas carregavam latas de alumínio em
suas mãos. Comprei uma igual no bar da esquina e me misturei na multidão.
Somente um detalhe não me fazia ser como os outros passantes. Somente um mísero
detalhe fazia toda a diferença. Qualquer tentativa de me juntar àquele povo e sentir
o mesmo que ele nessa noite de boemia era irrelevante, pois eu carregava algo.
Algo que me destacava. Eu era um escolhido. Não ganhei nada a não ser desgraça
com essa escolha. Sentia que a cada passo dado em direção ao entendimento,
menos eu compreendia. Sentia que a minha vida se fundia às páginas negras
tornando-me somente um figurante em um roteiro de uma história em curso.
Pendurado sobre o meu ombro havia uma bolsa e nessa bolsa havia todo o resto.
Havia tudo o que me diferenciava de tudo e de todos ali presentes. Apesar dos
meus esforços, não consegui me divertir. Nem o sorriso alheio, nem as lindas
mulheres que passavam, nem o som ligeiro e alegre daquela banda que distraía os
presentes. "Regional da Nair. Regional da Nair. Regional da Nair..."
repedi em busca de lembranças. Novamente a memória falhou e desta vez eu não me
importei. Fiquei parado observando o público com a lata de cerveja nas mãos. O
gosto amargo daquele líquido se intensificou com a temperatura com que me foi
servido, porém degustei sem ressalvas. Gole após gole.
Faziam três
cervejas que eu estava encostado na parede daquela casa quando senti as
pernas doerem. Caminhei de volta para casa. As gotículas de água começaram
a pender em direção à terra fazendo os jovens correrem em busca de abrigo. As
minhas roupas logo se encharcaram, pois os grossos pingos alcançavam a
terra com fúria. Ao abrir o portão, algo me fez dar meia volta. Não sei se
foi a bebida, mas eu precisava encontrar com a Stela. Finalmente, tinha algo a
dizer. Então, mesmo molhado pela chuva impiedosa, desci pela rua sete em
direção à casa dela. Sentia o coração se agitar a cada passo dado. Apesar da
água que atrapalhava a minha visão, mantive os passos rasos. Várias pessoas
passavam por mim. Eram os jovens se dispersando. Talvez voltando para as suas
casas ou quem sabe para um lugar seco onde pudessem continuar a noite. Ao
chegar à frente da casa dela, senti o coração quase parar. Um frio intenso
percorreu a minha pele e, acrescido pela roupa molhada, fez os músculos tremerem.
Diante do portão de sua casa, o sentimento que
brotou em meu peito foi o suficiente para me fazer adentrar por ele. Havia dois
portões na entrada. Uma grade de ferro dava acesso a um pequeno corredor de
dois metros de comprimento. O segundo portão também era uma grade de ferro,
porém o espaço entre uma grade e outra era preenchido por uma vidraça colorida,
porém um dos seus vidros estava quebrado. Percebi sangue no chão, o pânico que
invadiu o meu ser me fez forçar o portão. Olhos arregalados após conseguir
abrir sem esforço. Aquele portão aberto fez com que eu me lembrasse da casa dos
quatro rapazes mortos da rua Graciano Neves. Senti os olhos se umedecendo
ainda mais, porém agora era por causa dos sentimentos que se externavam por
lágrimas incontroláveis. Tomei a navalha em minhas mãos e adentrei sem
permissão. O medo de encontrar mais um cenário de morte maldito cegou os meus
sentidos.