10.
Então,
continuei a minha caminhada rumo ao teto que me abrigava e lá permaneci até o
peso das estrelas fechar os meus olhos com dedos delicados de princesa.
Aquela noite
correu tranquila, assim como os dias seguintes. Fiquei a semana inteira
perambulando pela cidade. Já que não me lembrava da vida que tinha no passado,
decidi criar uma nova para mim. Caminhava todos os dias até o Parque Moscoso
onde ficava por horas observando as pessoas indo e vindo apressadas. Comia algo
pela rua e à tarde eu passava em frente à casa da Stela na esperança de
encontrá-la bem. Parava no bar e esperava ela passar com a sua roupa de
ginástica, seu sorriso descontraído e seus passos angelicais. Era
sempre pontual nas suas caminhadas pela Beira Mar. Esta era a melhor parte do
meu dia. Era a minha dose diária de ânimo. Os segundos em que eu, anônimo,
ficava observando, daquele estabelecimento, a mulher dos desenhos, permaneciam
em minha memória. Dormia e acordava com esse pensamento. Apesar da ânsia em
saber mais sobre ela, nunca tive a vontade de me apresentar. Eu não teria o que
dizer àquela que iluminou os meus dias.
Depois de me
certificar da segurança da bela da casa lilás, eu voltava para o meu lar com um
sorriso no rosto e uma noite longa pela frente. Normalmente não fazia muitas
coisas nas horas em que sozinho me trancava entre quatro paredes. Descobri que
eu era um bom desenhista. Conseguia desenhar por horas a fio. Trazia à memória
alguma imagem interessante do meu dia e registrava no papel com a destreza de
um artista. As técnicas brotavam inconscientemente. Então, convenci-me de que
era essa a minha profissão no passado. Com o tempo, a poeira acumulada pelos
cantos começou a irritar as minhas narinas, fazendo-me espirrar fatigavelmente.
Decidi que deveria interromper a rotina que tinha criado para expulsar do meu
lar o pó que o tinha invadido sem permissão. Tomei vassoura, pano e rodo em
minhas mãos. Comecei pelos fundos, limpando fresta por fresta. Com um pano
úmido, limpei os móveis dispostos em cada cômodo do edifício que me abrigava.
No fim da tarde, eu já tinha chegado na sala. Foi onde encontrei algo que
devolveu a angústia ao homem que me forma.
Era uma
espécie de faca pontiaguda afiada nos dois lados de sua lâmina. O cabo
tinha a empunhadura dourada, forrada com couro preto. Haviam letras em toda a
parte dourada descoberta e, na parte superior do punho, a letra O estava
gravada em alto-relevo. Peguei o punhal em minhas mãos. Junto encontrei
uma bainha de couro preto que combinava com a empunhadura. Com ela nas mãos,
peguei o livro e comecei a folhear. Estava tudo igual, mas algo me dizia que
aquela navalha tinha alguma ligação com as páginas alvinegras que segurava.
Imaginei o seu fio penetrando a pele frágil e fazendo o líquido interno
necessário à vida ser externado por cortes profundos na garganta. As minhas
mãos começaram a tremer ao segurá-lo. Reluzia a claridade do ambiente cegando a
pupila dilatada pelo pânico que percorria todo o meu ser. Desejei fugir
deixando tudo que tinha descoberto para trás. Quis perder novamente a memória.
Talvez assim, aqueles corpos jogados pelo chão não voltassem a me assombrar.
Talvez assim, eu pudesse viver em paz como aquelas vidas que passavam por mim
nos meus dias pelo Parque.
Joguei o
punhal sobre o sofá e levei o meu corpo para fora de casa. Saí sem destino.
Somente caminhava sem me importar com onde eu chegaria. As janelas iluminadas
revelavam que havia vida na cidade. Questionava-me se somente eu vivia naquele
caos que parecia ter sido arquitetado por um psicopata qualquer. Andei por
horas, às vezes passando pelas mesmas ruas. Outras vezes, buscando caminhos ainda
não percorridos. O sino da igreja que acalmava o meu ser em tempos de
desespero, não soou as suas notas graves e cheias de vida. Quis correr, porém
as pernas não me obedeciam. Então, mantive o passo até que algo tirou a minha
atenção e pude mudar o foco das ideias. Foi uma voz e algumas palavras
agressivas que roubou de mim tudo o que carregava na minha fuga noturna.
Amansou o meu coração me fornecendo a luz da coerência mental.
"Paradinho!
Isso é um assalto!", disse com a mão apoiada em um objeto na cintura que
parecia uma arma.
"Eu não
tenho nada", tentei retrucar, mas fui impedido com um soco no rosto que me
lançou ao chão. Depois de ter me revistado, continuou dizendo.
"Está
com sorte hoje. Estou de bom humor", virou as costas e me deixou no chão.
Mantive um sorriso no rosto e a serenidade tomou o meu ser e me levou para
casa.
